Nazaré Soares tem 61 e dedicou a vida a compartilhar conhecimento e afeto. Ajudou a alfabetizar crianças de várias gerações, introduziu outros tantos adolescentes no intrincado universo da Língua Portuguesa e já fazia planos para gozar a merecida aposentadoria. Mas sua rota foi alterada pelo que a polícia descreve como um crime brutal. A vítima foi a filha caçula, que estava grávida e havia escolhido Rondonópolis para viver o que parecia ser um grande amor.
“Tive duas filhas. A Bárbara, que nasceu em 1987, e a Beatriz, que nasceu em 1991. Ambas nasceram na cidade de Piracicaba, no interior de SP, pelas mãos do mesmo obstetra o Dr. Santana”, disse Nazaré em entrevista exclusiva concedida à reportagem do AGORA MT.
As crianças passaram a infância no município de Araras, também no interior de São Paulo, e depois todos foram para a capital do Estado onde viviam os familiares de Nazaré e do marido.
Nas fotos compartilhadas com a equipe, vê-se uma família feliz. Beatriz sempre com um sorriso e cercada pelo afeto dos pais, da irmã e da Bisavó.
“Quando a Bia faleceu a bisavó dela ainda estava viva, com 101 anos. Elas eram muito ligadas”, diz Nazaré.
FEMINICÍDIO
Beatriz Milano, a Bia, foi encontrada morta no dia 24 de novembro de 2018 num imóvel na Vila Aurora, em Rondonópolis-MT. A jovem tinha 23 anos e estava com o companheiro, o médico Fernando Veríssimo de Carvalho, pai do bebê que ela levava no ventre.
Foi Fernando quem acionou o Samu naquele dia. Disse que a encontrou já desfalecida e negou que tivesse ocorrido entre os dois qualquer desavença. A hipótese inicial foi de uma morte natural.
Tudo mudou após a divulgação do exame necroscópico. Abaixo do couro cabeludo e no crânio os peritos encontraram sinais de violência que indicariam a verdadeira causa da morte. Fernando tornou-se suspeito, fugiu e acabou preso posteriormente.
O médico continua preso. O julgamento deveria ter ocorrido na última segunda-feira (20). O júri chegou a ser aberto, mas foi adiado por causa de uma falha processual.
Nazaré participava por vídeo conferência e não escondeu a frustração. Mas engana-se quem pensa que ela está desanimada ou descrente na Justiça.
Na entrevista a seguir ela fala sobre o adiamento e dá detalhes da relação da filha e o homem acusado de assassiná-la. Nazaré fala também sobre a violência contra as mulheres e de como essa realidade inverte a ordem natural, levando pais e mães a sepultarem os filhos ainda jovens.
AGORA MT– O que a senhora achou do adiamento do julgamento do acusado de assassinar a Bia?
R-Acredito que a Justiça está agindo com cautela, nós da família queremos uma condenação limpa que não dê espaços para artimanhas jurídicas posteriores.
AGORA MT – Qual é a expectativa da família em relação ao julgamento em novembro?
R- Que ele seja condenado plenamente em todas as violências por ele cometida servindo de exemplo as muitas famílias que passaram pelo mesmo. A impunidade é um dos fatores que gera nossa atual situação de tão altos índices de feminicídios no País.
AGORA MT – A senhora concorda com a conclusão do inquérito apontando o Fernando como assassino? Porquê?
R- Sim. Acredito que o laudo é bastante claro quanto a causa morte de minha filha.
AGORA MT – Como foi que a Bia e o Fernando se conheceram?
R – Numa rede social, no fim de 2017.
AGORA MT – A senhora também se relacionava com ele? Que impressão a senhora tinha dele antes do crime?
R – Sim, essa lembrança muito me entristece pois tivemos alguns contatos, assistimos um dos jogos da Copa do Mundo no apartamento onde ele residia na praia, momento em que conheci a família dele; ficou em minha casa em São Paulo por quatro dias nas férias da Bia…falamos em nossas trajetórias de vida e a importância da família, ele deixou transpassar alguns conflitos familiares, contudo, foram situações sociais, acho que não houve tempo para que eu pudesse construir exatamente uma impressão. Já minha filha mais velha, a Barbara, que teve com ele conversas mais descontraídas, relata uma certa prepotência nessa figura social de médico e classe média, disse uma vez: “Eu jamais vou ser preso, sou branco, sou médico”. Na verdade, para nós, é tão inverossímil que uma pessoa possa matar outra!
AGORA MT – Como foi que eles decidiram morar juntos?
R – Isso veio somente em função da gravidez, Beatriz havia sido promovida para uma filial da empresa Brado em Rondonópolis–MT. Na verdade, alguns dias antes de levar a mudança dela para Rondonópolis ela me disse que levaria a mudança dos dois.
AGORA MT – A senhora então sabia que a Bia estava grávida? Ela havia comentado com vocês algo sobre o dia a dia deles aqui?
R – Sim, desde o inicio soube da gravidez e acompanhava diariamente pois falávamos por telefone todos os dias inclusive eu já estava fazendo parte do enxoval do bebê o que a deixava muito feliz. Quando ela soube da gravidez eles estavam afastados por causa de um episódio violento em que ele a agrediu fisicamente. Inclusive, por parte da minha família, houve a sugestão de não contar no primeiro momento sobre a gravidez, ela pensou durante três dias mas achou que o correto seria contar, pois ela estava de partida e segundo palavras dela “ esse não seria assunto de se falar através de WhatsApp”. Por isso, Bia contou da gravidez em um local público, onde se sentia mais segura, pois não sabia qual seria a reação dele, e já havia tido um episódio de violência.
AGORA MT – Após o crime houve alguma tentativa de contato do Fernando ou da família dele com vocês?
R – Sim, houve contato posterior, contudo, acredito que este será assunto para o júri de modo que prefiro não entrar em detalhes neste momento. Mas posso falar que ele compareceu no velório e enterro de minha filha. E isso é algo que tenho muito forte, em cada detalhe, na minha memória.
AGORA MT – O Brasil é um dos campeões do mundo em casos de violência contra a mulher e Mato Grosso lidera o ranking de feminicídios. Como mulher e mãe, o que a senhora acha disso e o que podemos fazer para mudar essa realidade?
R- Infelizmente estamos diante de tão triste realidade! Sou professora e esse tema foi assunto em minha sala de aula muitas vezes, e como mãe é indescritível. Parece inverter a ordem das coisas naturais, uma mãe ter que enterrar uma filha e por motivo tão torpe.
AGORA MT – Muitas pessoas em Rondonópolis e no Brasil ficaram chocadas com a morte da Bia e têm manifestado solidariedade a sua família. Como a senhora recebe essas manifestações?
R – Recebemos com imensa gratidão toda a solidariedade e empatia, essa capacidade de nos emocionarmos com a história do outro é da mais alta demonstração de nossa humanidade. Acredito que essa reverberação amorosa eu diria que é o maior pressuposto que esperamos nessa Transformação Social URGENTE!