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DICA DA SEMANA

Veja 7 bons filmes novos da Netflix que vão adicionar emoção aos seus dias da semana

Os títulos estão listados por ano de lançamento

Da Redação
VIA

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Mesa para Quatro (2021)- Foto: Reprodução

A Revista Bula selecionou sete filmes que chegaram esse mês ao catálogo da Netflix. Todos os selecionados já foram resenhados pela Bula e tiveram avaliações iguais ou superiores a nota 8. Na lista, entre outros, o drama de espionagem britânico “Munique: No Limite da Guerra” (2021) de Christian Schwochow, o suspense indonésio “As Fotos Vazadas” (2021), de Wregas Bhanuteja; o drama turco “O Violino do Meu Pai” (2021), de Andaç Haznedaroğlu, o suspense de ação polonês “Como Me Apaixonei Por um Gângster” (2022), de Maciej Kawulski, e a comédia romântica italiana “Mesa para Quatro” (2021), de Alessio Maria Federici. Os títulos estão listados por ano de lançamento.

Como Me Apaixonei Por um Gângster (2022) Maciej Kawulski

“Como me Apaixonei por um Gângster” tem deixado um rastro de polêmica desde seu lançamento, em 5 de janeiro de 2022. O filme do diretor polonês Maciej Kawulski desagradou os críticos, que não veem aqui o brilho de Kawulski na produção que antecede o filme de 2022, com o mesmo mote e cuja estreia se deu em 2019; não satisfez a última mulher do personagem retratado, cujo depoimento, na boca da atriz Krystyna Janda, conduz o enredo — ela chegou a sugerir um boicote ao longa — e por último, mas não menos importante, enfureceu o público, que não entende a necessidade de se romantizar a vida de bandidos, sobretudo na Polônia. Qual o motivo para tanto ódio?

Quem diz que Nikodem Skotarczak, interpretado por Tomasz Włosok, está a léguas do real pode reivindicar sua medida de razão. Kawulski tentou desfazer o mal-entendido, alegando, numa tela negra antes da história ter início, que o que se vai assistir é “inspirado” na vida de Skotarczak. Personagens, eventos e diálogos podem ser baseados em eventos e pessoas que fizeram parte da trama que se conta, mas há que se lembrar a diferença, elucidativa, entre documentário e história verídica, como também há que se pontuar que alguns personagens e acontecimentos ocorridos com Nikodem Skotarczak foram abreviados, estendidos ou mesmo limados do corte final, numa decisão de viés puramente artístico dos realizadores. Destarte, a história é o que se propôs a ser desde o começo, uma história, e não um ensaio biográfico ou documental.

Ninguém prometeu verdade absoluta em “Como me Apaixonei por um Gângster”, e no entanto, uma de suas maiores qualidades é o realismo. Os filmes de gângsteres costumam ser os mais populares do cinema, justamente devido a essa estranha identificação entre espectador e protagonista, criminosos muitas vezes perversos que concentram fatos e visão artística de uma forma que diretor nenhum, por mais genial que fosse, se atreveria a imaginar. Embora a discussão acerca de se glamourizar a vida de tipos marginais — expediente francamente abominado pela sociedade polonesa, mesmo em trabalhos de caráter reiteradamente artístico —, que logo são tomados sob a condição de celebridades ou, pior ainda, glorificados, toque num ponto sensível e de fato grave, Kawulski não pode ser crucificado: ele só se comporta como quase todo cineasta deslumbrado com sua história e o resultado de seu empenho costumam fazer. “Como me Apaixonei por um Gângster” é entretenimento, e só. O filme é, portanto, um deleite para os olhos do espectador, e tal deleite teria sido inviável se Kawulski tivesse se decidido a transferir para seu filme a encarnação mais fidedigna do gângster ao que realmente foi.

Tal como está no filme, a história de Kawulski não foi totalmente mexida. Muito do que se encontra no roteiro de Kawulski e Krzysztof Gureczny aconteceu mesmo. Roubos de carro; o plano arrojado que permitiu a Skotarczak escapar da prisão; as figuras com quem se relaciona — logo se nota que o gângster teve muitos mais amigos que desafetos —; “atividades desportivas” relacionadas ao Lechia, time de futebol de Gdański que passa a patrocinar com vistas a lavar o dinheiro do contrabando de automóveis da Polônia para a Alemanha Oriental, em pleno regime comunista, todas essas são passagens verdadeiras da trajetória de Nikoś pelo submundo do crime organizado do Leste Europeu, mas há detalhes apresentados por Kawulski que fazem toda a diferença, boa parte deles no que diz respeito à atitude de certos personagens diante da vida. O próprio Nikos era, aparentemente, muito menos dado a trabalhar, mas o diretor faz com que se sinta que o personagem de Włosok não subira tanto por obra do acaso. O que se sabe sobre ele vem à superfície graças às memórias borradas, pelo próprio tempo ou intencionalmente, de quem privou de sua intimidade, assim como à pesquisa, cuja fonte principal se constituiu em outras realizações audiovisuais e publicações.

Com certeza, o que se conhece sobre Nikodem Skotarczak é que ele nasceu em 29 de junho de 1954, em Pruszcz Gdański, na voivódia (estado) da Pomerânia. Aluno medíocre, decidiu rápido privilegiar o trabalho, e aos dezenove anos, consegue um emprego como leão-de-chácara na boate Lucynka, indo para a Maxim depois. A carreira como delinquente teve início a essa mesma época, quando passou a roubar carros com o irmão, negociando em moeda estrangeira, e a fazer pequenos favores a Michał “Patrono”, todo-poderoso da máfia da cidade. Aos poucos, Nikoś vai expandindo seus conhecimentos sobre fraude monetária para a Hungria, onde amplia a rede de contatos com outros criminosos, com quem principia a trocar, além dos carros, antiguidades de valor, como relógios. Para se provar um legítimo fora da lei, dá ordem para que se mate o homem com quem tivera uma desavença em Budapeste, mas a determinação não foi cumprida.

Ao longo de mais de três horas, depreende-se de “Como me Apaixonei por um Gângster” a tentativa de Maciej Kawulski de edulcorar a figura de Nikoś, como se fosse apenas um homem meio perdido que vira no crime a oportunidade de se encontrar. O público polonês está certo ao sentir ultrajado com a abordagem amaciada de Kawulski, que vende seu protagonista como um bom ladrão. Realmente, não se pode negar que Nikoś fosse muito menos violento que seus homólogos na máfia, mas a história do Rei da Tri-Cidade — núcleo urbano da Polônia, localizado na Pomerânia, que abrange a área urbana dos municípios de Gdansk, Gdynia e Sopot —, malandro astuto, embora não parecesse, é pautada por uma resolução consciente pela vida infralegal, por mais rígida que tenha sido sua criação. Criminosos disputam a predileção do espectador numa concorrência desleal com outros tipos. Se barbarizam, são louvados por sua bestialidade; se, pelo contrário, lançam mão de seu soft power, seu poder de persuasão pelo diálogo, pelo carisma, pelo charme, são alçados à paradoxal condição de heróis, confirmando a máxima de Brecht. Nikodem Skotarczak morreu em 24 de abril de 1998, aos 34 anos, fuzilado por homens mascarados, decerto contratados por seus pouquíssimos rivais. Seu corpo só foi enterrado numa cerimônia católica após a intervenção do arcebispo de Gdański, Tadeusz Gocłowski.

As Fotos Vazadas (2021), Wregas Bhanuteja

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As fotos vazadas- Foto: Reprodução

Depois dos curtas-metragens “Lemantun” (2014), “Lembusura” (2015), “The Floating Chopin” (2016), “Prenjak” (2016) e “No One is Crazy in This Town” (2019), o indonésio Wregas Bhanuteja se provou, enfim, um autor maduro. Falando de dramas familiares que se tornam insustentáveis numa realidade opressora, irrigada pelo rigor religioso e pela pobreza, “As Fotos Vazadas” (2021) apresenta algumas das dificuldades que se tem para se subir na vida quando talento e honestidade são quase todo o capital de que se dispõe para isso.

Bhanuteja já abre seu filme compondo um perfil diligentemente apurado da protagonista, Suryani. A personagem de Shenina Cinnamon é uma garota sem maiores encantos, salvo pela dedicação aos estudos, o que, crê, é capaz de dar-lhe condições de ascender socialmente. E ela se sai bem nessa missão: quando não está na faculdade, está ajudando os pais na pequena lanchonete que mantêm num bairro afastado de Jacarta, tudo como mandam os costumes islâmicos, ou cumprindo as atividades voluntárias exigidas pela reitoria para a preservação da bolsa de estudos que lhe permite frequentar as aulas numa instituição de tanta qualidade como a Mata Hari. Sur é a responsável por desenvolver e alimentar o site da companhia de teatro, e se destaca. A nova apresentação do grupo, uma releitura de histórias da mitologia grega, é aclamada no circuito alternativo e em comemoração, Rama, que escreveu o texto, dá uma festa, para a qual a anti-heroína é convidada de última hora, meio à contragosto do anfitrião, mas aceita ir de imediato.

A despeito do patrimônio de cada um, logo resta claro que o personagem de Giulio Parengkuan e Sur pertencem a mundos que não se tocam. Rama é muito rico, filho de artista e, à medida que a história avança, percebe-se que seu liberalismo diante da vida esconde uma boa parcela do comodismo covarde de sempre teve de tudo, não foi obrigado a empreender suas conquistas por si só e quer que tudo continue exatamente assim. A protagonista nunca soube o que é luxo; filha única de um casal pobre, cuja maior herança que podem lhe transmitir é mesmo uma vida pautada pela correção moral, uma das condições que Sur teve de jurar ao pai que observaria era não ingerir álcool. Ela chega acompanhada de Amin, de Chicco Kurniawan, seu amigo de infância, hoje funcionário da fotocopiadora da universidade, com quem combinara que iriam embora às oito da noite. Conforme vai se soltando, Sur toma uma ou outra dose, Amin sai sem ela e no dia seguinte sua vida parece ter acabado: diversas selfies em que aparece bêbada foram postadas em seu perfil numa rede social.

Um episódio que passaria sem maiores consequências numa outra conjuntura qualquer adquire o status de tragédia para quem só tem o próprio nome para falar em sua defesa. Sur chegara muito depois do horário combinado com Amin, carregada por estranhos, e toda a vizinhança passa a saber da história. Acorda tarde, quase perde a audiência com os representantes dos mantenedores do programa de bolsas, mas não todo o seu esforço não adianta. A eles é reservado o direito de vetar a participação de estudantes que infligem os códigos morais, e Sur está fora. Volta para casa só para saber que o pai, furioso, lhe destina o mesmo tratamento e a põe na rua. Mesmo magoada com Amin, pede-lhe ajuda — até porque, a princípio, ele é a única pessoa com quem pode contar — e valendo-se do anexo da fotocopiadora, onde o amigo mora, estabelece seu quartel-general a fim de metodizar suas investigações, com direito a uma rede que lhe permite hackear os computadores dos colegas que compareceram à festa de Rama, uma esperança de que chegue aos culpados por sua desgraça. Apenas uma esperança, mas reavivada por figuras como Farah, vivida por Lutesha, que lhe havia alertado, ainda que obliquamente, sobre evitar essas interações sociais aparentemente sem segundas intenções.

“As Fotos Vazadas” não tem nada de mais, o que lhe confere uma margem de acertos infinitamente mais ampla que os equívocos em cascatas que filmes congêneres, de diretores muito mais experimentados, teimam em sustentar. Um deles é abordar o detetive como o salvador da Pátria, um sujeito quiçá dotado de poderes sobrenaturais que faz com que todos os problemas da trama pareçam um joguinho tolo, em que sempre se consagra vencedor e do qual enjoa depressa. Uma das características mais inovadoras neste primeiro trabalho de fôlego de Bhanuteja é evitar alongar demais o enredo que sustenta o filme, dando autonomia à sua personagem central para resolver suas próprias questões — do contrário, não faria sentido dar tamanha ênfase a seus talentos para assuntos cibernéticos — e poupando tempo para desenvolver alguns arcos dramáticos numa narrativa caudalosa de mais de duas horas. “As Fotos Vazadas” mostra a personagem de Cinnamon vilipendiada, ferida, realçando seu aspecto de sobrevivente, mas ávida por justiça, e fazendo dessa sua nova condição um renascimento. O diretor chega a esse resultado louvável ao passo que tece uma glosa social certeira à disparidade no apoio das instituições para ricos e pobres, ao patriarcalismo das famílias muçulmanas na Indonésia e aos perigos das redes sociais, respaldado por um elenco que responde à altura. A performance de Shenina Cinnamon, que confere à Sur a crueza emocional que é a essência mesma da personagem, providencialmente substituída por um lado patologicamente malicioso, em que deve encarar qualquer um sob a forma de um inimigo calculista e perverso. Seu amadurecimento forçado, de garota ingênua para uma justiceira encarniçada, conta com o amparo de Lutesha, numa transição interessante entre a carreira de modelo e a consolidação de seu trabalho na arte dramática.

Por óbvio, as estratégias de que Sur lança mão no intuito de levar a cabo sua vingança suscitam intermináveis discussões filosóficas sob a perspectiva ética, mas o sentimento de retaliação é, por si só, quase que apenas bestial, malgrado quando se precisa de sofisticação intelectual para sair do papel. Outras questões, essas, sim, graves, permanecem sem resposta, silenciadas por razões mercadológicas. Três dias antes de começar a ser divulgado, levantou-se contra o filme uma série de acusações de assédio sexual envolvendo um membro da equipe cujo nome eles preferiram manter sob sigilo. O crime teria ocorrido num passado já distante, mas ainda assim o acusado teve seu nome apagado dos créditos e está banido da Rekata Studio, produtora responsável por rodar o filme e blindá-lo de qualquer importunação.

Há quem não tenha se conformado e siga condenando o filme por defeitos que sequer lhe dizem respeito, apesar de uma história de bastidor dessa natureza ser de uma ironia saborosa. Quanto ao que importa, “As Fotos Vazadas” é um suspense que transcende o mistério, e discorre sem medo sobre os lados de sombras do gênero humano e o que significa viver sob o tacão de uma vergonha que se impõe sem prévio aviso.

Mesa para Quatro (2021), Alessio Maria Federici

A vida é boa, e tudo o que é bom sempre pode ficar melhor. Uma das possibilidades de se chegar a esse melhor é encontrando aquela pessoa que nos entende, nos completa, está por perto nos momentos decisivos, se preocupa com nossos problemas. Uma das definições mais verdadeiras — e menos românticas — de relacionamento amoroso é conseguir ser feliz quando a força do amor é tudo o que resta incólume ao longo dos anos. Encontrar quem nos leve a querer buscar essa força, lamentavelmente, independe de nós.

São poucos os filmes honestos o bastante para admitir e expor a fragilidade do envolvimento romântico, a despeito da etapa em que a relação esteja. Duas pessoas dispostas a se interessarem genuinamente uma pela outra, sem terceiras e sub-reptícias intenções, já é quase um acontecimento, e quando isso de fato se concretiza, há que se começar a fazer um esboço de que caminhos tomar para que a relação frutifique mesmo. À primeira vista, o argumento soa pouquíssimo emocional, mas “Mesa Para Quatro” (2021) além de um filme de amor é também uma história realista. O diretor Alessio Maria Federici não quer saber das pieguices costumeiras do gênero. Tomando por base o roteiro preciso de Martino Coli, “Mesa Para Quatro” não deixa lugar para diálogos sobre almas gêmeas, amor eterno, fidelidade e outras bobajadas de um tempo morto, diligentemente vendidas por uma Hollywood cínica, que para chegar onde chegou teve de abafar os casinhos inconsequentes entre atores e atrizes comprometidos com outras pessoas, bem como varrer para debaixo do tapete escândalos de atrizes solteiras que engravidavam de atores casados e eram convencidas pelos donos de estúdios a abortar, uma constante na Era de Ouro do cinema, entre os anos 1920 e 1960 — isso para não falar do assédio desses mesmos donos de estúdios e produtores influentes a atrizes iniciantes ou consagradas, que infestava o noticiário até outro dia.

O europeu — e sobretudo o italiano — lida com suas emoções de um jeito menos solene, até leviano, se se quiser. O amor em “Mesa Para Quatro” é encarado sob a forma de um jogo de sedução, em que a troca de mensagens por telefone e o bom e velho olho no olho importam (e, por óbvio, as ondas de calor e os calafrios que se sucedem), mas não a ponto de empanar outras esferas primordiais para a realização pessoal de alguém. Carreira, autonomia, liberdade e os laços que se formaram antes do namoro, nessa ordem, não são negligenciados só por causa de uma febrícula passional qualquer, e os personagens o deixam muito claro.

Durante um jantar de amigos em comum, Matteo, interpretado por Matteo Martari, e Dario, de Giuseppe Maggio, são apresentados a Giulia, vivida por Matilde Gioli, e Chiara, personagem de Ilenia Pastorelli. A partir de então, Federici conduz a narrativa de maneira impressionantemente ágil, fundindo as subtramas umas às outras, de modo a confundir o espectador de propósito. Num piscar de olhos, Giulia, que a princípio era namorada de Dario, passa a sair com Matteo, que começava a se interessar por Chiara. Leva algum tempo até que o público se dê conta de que esse é um expediente de mera conjectura, momento em o diretor se esmera por tentar persuadir quem assiste de que a vida de seus protagonistas seria melhor se tivessem feito outras escolhas, pelo menos no que diz respeito às trapaças do amor.

O texto de Martino Coli revela o apogeu de seu brilho justamente nesse ponto da trama, quando os possíveis casais ainda estão por conhecer uns aos outros sem as tantas máscaras sociais que todos somos obrigados a usar no cotidiano. Não por coincidência, é aí que o filme é capaz de se alongar sem pressa sobre a natureza de seus personagens, fazendo a complexidade refinada do enredo ser digerida mais facilmente, mérito também do elenco. “Mesa para Quatro” acabaria por se transformar numa das tantas comédias românticas hollywoodianas que critica, conscientemente ou não, caso não dispusesse de atores talentosos, zelosos para com sua composição e afinados entre si, dando a ideia exata da sátira social encampada por Federici, um profissional igualmente rebuscado, que consegue fazer com que os arcos dramáticos se repitam, dando a sensação de falta de sintonia — ou promiscuidade — entre os protagonistas, ressaltando que a história se encerra de tal ou qual maneira, a depender dos envolvidos, o que, por evidente, fomenta outros desdobramentos, e o faz sem defender esta ou aquela opinião sobre se agem certo ou errado. A única defesa patrocinada pelo filme, óbvia, é a de que vive-se o amor que se é capaz de viver, isto é, a relação perfeita para um individuo pode ser surpreendentemente tormentosa para outro. Só há amor se nos reconhecemos nele.

Embaralhar os dois eixos narrativos se mostra um recurso sagaz do diretor, conferindo assim ritmo à trama — que às vezes acelera um pouco demasiadamente —, mas o maior trunfo de “Mesa para Quatro” é mesmo incluir a audiência na brincadeira. A dada altura, o espectador se sente tão personagem quanto Matteo, Dario, Giulia e Chiara, vibrando com as reviravoltas de cada um e se deixando levar pelo que assiste, sem conseguir resolver sobre com quem fica sua torcida. Martari, Maggio, Gioli e Pastorelli entendem a proposta e dão ao filme o aspecto caótico que o define, um retrato perspicaz do que é tentar ter um compromisso a sério nos nossos dias.

Munique: No Limite da Guerra (2021) Christian Schwochow

Ainda há episódios sobre os quais pouco se sabe — ou sobre os quais não se sabe tudo — envolvendo a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O drama britânico “Munique: No Limite da Guerra”, uma adaptação do romance homônimo de Robert Harris, traz ao centro de sua história dois diplomatas, ex-amigos em lados adversários das batalhas, um representante do Eixo, o outro, dos Aliados. Christian Schwochow, o diretor do longa, parte da relação entre os dois personagens a fim de mostrar os desdobramentos da conferência de Munique, em 1938, e o acordo de paz entre Alemanha e Inglaterra que poderia ter nascido da iniciativa, mas restou frustrado.

Charmoso, como grande dos filmes que retratam os bastidores de conflitos armados pelos salões suntuosos de palácios ao redor do mundo, “Munique: No Limite da Guerra” joga luz sobre questões básicas para se entender o que levou à eclosão de mais uma série de enfrentamentos entre povos, muito mais devastador que o encerrado vinte anos antes. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) fora a grande responsável por ratificar a hegemonia americana e os Estados Unidos se firmaram como a maior potência bélico-econômica do mundo desde então. Em 1917, a participação efetiva da América, afinada com Inglaterra e França, foi determinante para a vitória da Entente, grupo que reunia essas três nações, que pegou os alemães e italianos desprevenido e cansados depois de três anos de combate. Em 1939, Itália e Alemanha estavam prontas para dar o troco, cada uma liderada por seu facínora. Adolf Hitler (1889-1945), pelo lado germânico, e Benito Mussolini (1883-1945), comandando as tropas italianas, mergulhando o mundo em mais seis anos de caos. Não existe no trabalho de Schwochow, lançado em 2021, intenção de se esconder os jovens que foram desumanizados, seviciados e mortos pelos nazistas, mas a mensagem de esperança do filme chega a ser curiosa.

Não é exagero dizer que aqueles eram outros tempos, em que se fixavam outras vidas. No flashback que dá azo à introdução de “Munique: No Limite da Guerra”, três jovens estudantes da Universidade de Oxford celebram a vida numa festa regada a muito champanhe e ornada por shows pirotécnicos, retrato de uma geração meio perdida, feliz, mas alienada, sem guerras a lutar e sem pressa para resolver que caminho seguir. Seis anos depois, em Londres, Paul von Hartmann, o personagem de Jannis Niewöhner, é um alemão que se vangloria de sua origem; inicialmente, esse autodeclamado amor por sua identidade tedesca passa ao largo das atenções do amigo Hugh, de George MacKay, e de sua então namorada Lenya, vivida por Liv Lisa Fries. Mas Paul, um dedicado funcionário do Serviço de Relações Exteriores da Alemanha, tem a ambição de conhecer Hitler, mostrar-se útil ao führer, auxiliá-lo no que precisar. Hugh, por seu turno, é o secretário do ministro das Relações Exteriores britânico, o que implica estar a par de detalhes acerca da política internacional do Reino Unido para com outras nações, manter um bom relacionamento com seus superiores e, quando necessário, oferecer a expertise adquirida em Oxford sob a forma de conselhos ao premiê Neville Chamberlain (1869-1940), principalmente sobre como lidar com Hitler.

Quase todas as reviravoltas de “Munique: No Limite da Guerra” desapontam o que o espectador queria da história, o que acaba se revelando positivo. As cenas que registram a convivência de Hugh e Chamberlain são sempre carregadas de tensão, que a experiência de Jeremy Irons como o primeiro-ministro britânico sabe valorizar. Nos momentos em que o personagem de MacKay tenta municiá-lo de informações sobre a guerra, o que inclui um documento sigiloso que conjectura sobre para que direção o conflito deve seguir, o público entende um pouco mais a insânia que se desenrola. O encontro entre Chamberlain e Hitler, uma composição esmerada de Ulrich Matthes — ainda que o physique du rôle de Matthes seja muito diferente da figura real do ditador alemão —, a que também compareceram Mussolini e Édouard Daladier (1884-1970) chefe de Estado francês, dá a dimensão histórica do que cada uma dessas personalidades viera a representar para sua respectiva gente.

Mesmo dono de uma natureza monstruosa, era inegável a habilidade de Hitler em contornar situações à primeira vista inexpugnáveis, mas que se tornaram pouco mais que uma brincadeira dado seu inestimável talento em parecer o que não era. Por outro lado, Chamberlain, a quem Winston Churchill (1874-1965) definira com a frase sobre se querer preservar a paz a todo custo, perdendo-se a honra — e tendo por brinde a guerra —, entrou para a história como um político inepto, um homem covarde e um líder que não sabia liderar. Neville Chamberlain foi obrigado a abandonar o governo do Reino Unido, em maio de 1940, e morreu de câncer no intestino seis meses depois, em 9 de novembro daquele ano, abrindo caminho para a volta de Churchill.

“Munique: No Limite da Guerra” faz mais que apenas motivar a audiência a refletir sobre as causas e efeitos da guerra. Valendo-se de recursos de lírica beleza como no cinema é possível, Christian Schwochow derrama seu enredo sobre o público, que absorve o roteiro de Ben Power sem dificuldade. Filmes sobre guerra têm, geralmente, duas alternativas: ou dão preferência a ação, evidenciando a truculência óbvia dos combates, ou, ao contrário, permanecem junto com quem assiste, como se tentando adivinhar os próximos passos da história. Esse é um exercício para quem se permite desafiar.

No Caminho da Cura (2021), Robert Greene

Há pelo menos duas décadas, a Igreja Católica vem tendo de lidar com um problema grave ao longo de sua história, mas só então posto à luz. Se antes casos de abuso sexual de crianças e adolescentes cometidos por clérigos restavam abafados para sempre, desde 2002, quando a imprensa tomou pé da situação, estampando em suas manchetes eventos assombrosos dessa natureza, esses episódios não ficam mais para as calendas, esperando que a sociedade se esqueça deles à medida que o tempo passa.

Robert Greene se impôs uma empreitada difícil, mas também estimulante, com “No Caminho da Cura”. Em 2018, a entrevista de seis homens de meia-idade de Kansas City chamou-lhe a atenção. Os seis haviam sido vítimas de estupro por sacerdotes católicos, e quanto mais fundo se ia mais grossa a lama se tornava. O esquema foi adquirindo o caráter de uma verdadeira organização criminosa, em que o Vaticano teria dado guarida a 230 padres daquela diocese envolvidos diretamente no tráfico de crianças para fins sexuais, punindo sem rigor ou mesmo apenas tolerando e até ignorando os abusadores, e não só lá.

Três anos antes, “Spotlight — Segredos Revelados” (2015) esquadrinhara didaticamente o modus operandi da quadrilha. Num drama histórico-biográfico algo similar ao formato de que Greene lança mão, Tom McCarthy detalha que, ao passo que sacerdotes eram flagrados em tais delitos, o bispo tratava de coibir qualquer investigação possível, mantendo-os longe até que tudo fosse tragado pelas brumas dos anos. A saída para se evitar um escândalo, que de tão monumental não tardou em vazar para a imprensa, era transferi-los para uma cidade distante e, claro, pagar generosas indenizações extraoficiais. Além do problema se perpetuar, por óbvio, houve um momento em que, de tão numerosas, as denúncias não cabiam mais no orçamento. Fim da linha.

Como se sabe, a ignomínia desses homens, que se valem de uma condição especial para molestar menores, quase sempre do sexo masculino, nunca mais saiu do noticiário. O diretor entrou em contato com Rebecca Randles, a advogada do grupo, que lhe dissera que estava sendo aplicada uma nova abordagem para que seus clientes expusessem seus traumas mais livremente, visando a uma possível remissão dos efeitos que a lembrança dos ataques ainda exercia sobre eles. Monica Phinne, uma dramaterapeuta que usa técnicas do teatro no intuito de ajudar pessoas violentadas a superar a experiência, foi incorporada ao projeto, e Greene enxergou nesse ponto o gancho principal de “No Caminho da Cura”.

A produção, lançada em 2021, é o registro de todo o processo. Utilizando-se de uma maneira pouco usual, o diretor divide seu documentário em duas parres mais ou menos homogêneas. No primeiro segmento, Greene traça um panorama geral dos eventos envolvendo pedofilia junto a instituições religiosas, não só católicas; no segundo, o diretor confere a “No Caminho da Cura” sua porção dramatúrgica, mas não ficcional, uma vez que baseada nos relatos de seus protagonistas. Numa espécie de terapia de grupo, instante em que o espectador toma conhecimento das histórias a serem encenadas pelos próprios analisandos, Mike Foreman, pedreiro autônomo, rememora o dia em que fora obrigado pela mãe a entregar um bolo ao padre que o havia estuprado; em seguida Dan Laurine, gerente de uma loja que aluga equipamentos eletrônicos, narra sua violação, por dois padres, durante uma pescaria, quando se hospedaram numa casa à beira lago; depois é a vez de Ed Gavagan, empreiteiro em Nova York, que proporciona o respiro cômico da trama, mesmo um ambiente em que a tensão é palpável; Joe Eldred ensaia uma volta no tempo e balbucia algumas palavras para o garoto frágil que não conseguira escapar às investidas bestiais de alguém que tomava por um santo. As confissões se encerram com o designer de interiores Michael Sandridge, ainda um devoto fiel mesmo tendo sofrido um estupro na casa paroquial da igreja que frequentava, e que empresta sua sensibilidade aos demais, fornecendo boas recomendações quanto à maneira de se compor o filme. Tom Viviano é o único que não toma parte dessa etapa da terapia, por seu caso correr em segredo de justiça, mas é um personagem onipresente em “No Caminho da Cura”. A figura rechonchuda de Viviano encaixa-se à perfeição nos papéis de padre e bispo dos enredos dos outros cinco, performances tão espontâneas quanto comoventes.

Questionando o que se convencionou entender por ser homem, Greene vai conseguindo penetrar no lado sombrio da alma de seus protagonistas, que por alguma razão houveram por bem manter a história num relativo sigilo. Alguns chegaram a expor seu drama aos pais, mas obtiveram como contrapartida a desconfiança e o ultraje, como Foreman, que depois de ter passado o pior momento de sua vida, teve de presentear seu agressor, como se no fundo fosse o responsável por sua desgraça. Decerto essa é uma das chaves que ajudam quem assiste a “No Caminho da Cura” a vislumbrar uma explicação para que o ciclo vicioso do crime sexual praticado por padres e pastores, nessa ordem, não tenha fim.

Declarar publicamente ter sido alvo de um comportamento tão abjeto pode, mesmo obliquamente, depor contra quem acusa. Sempre há de restar uma dúvida, de quem quer que seja, sobre se o ofendido não teria sido merecedor de sua ofensa. Uma realidade bárbara, que as mulheres vivenciam desde que o mundo é mundo.

Com todo o tato que um trabalho dessa natureza exige, Robert Greene leva às telas um filme incômodo, que nunca resvala na leviandade e no mau gosto, mas que sequer chega perto de esboçar um desfecho para o problema sobre o qual se estende — e diante de histórias desse gênero sempre vem à baila, estupidamente, o argumento de que arte deve ser mais que elencar e jogar luz sobre as grandes questões do gênero humano, como se essa fosse uma tarefa menor. A função mais nobre do fazer artístico é instigar o homem a abandonar a vontade de se lamentar ad aeternum, tão natural e até instintiva, combater seus algozes e tirar de si um pouco de sua miséria existencial, própria ou, no caso, adquirida. Isso “No Caminho da Cura” faz irretocavelmente.

O Violino do Meu Pai (2021) Andaç Haznedaroğlu

A Turquia tem uma tradição sólida no cinema. O documentário “A Demolição do Monumento Russo em St. Stephen” (1914), dirigido por Fuat Uzkinay (1888-1956), é o primeiro filme genuinamente turco de que se tem notícia e, desde esse momento, a produção cinematográfica do país nunca mais parou, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando os ânimos das nações serenaram e havia mais uma razão para se contar boas histórias, e de forma mais autônoma. O fim dos enfrentamentos entre os países serviu para que os diretores turcos viessem à luz e apresentassem sua própria visão de mundo, sem se preocupar se teriam subsídio do Estado para filmar enredos sobre militares sobre-humanos que salvavam a Pátria de ameaças invisíveis ou reproduzir peças já encenadas pelas companhias de teatro. De 1923 a 1939, a Turquia contou com apenas um diretor. Muhsin Ertugrul (1892-1979) levou à tela 29 produções ao longo desses dezesseis anos, mas a partir de 1952, o cenário se desanuviou de vez e 49 roteiros foram rodados no país, número superior a tudo o que a Turquia já havia produzido em toda sua história.

O cinema turco foi se tornando cada vez mais popular e, entre as décadas de 1960 e 1970, a produção nacional já era capaz de lançar cerca de 300 filmes por ano, façanha que alçou a Turquia ao terceiro lugar no ranking dos países de maior destaque na indústria cinematográfica mundial. Cinema virou uma atividade de que a Turquia não podia mais prescindir, como a Hollywood para os Estados Unidos e Bollywood para os indianos. A Yesilcam, o conglomerado que reunia os estúdios turcos mais importantes, tinha público cativo, ancorando sua produção em melodrama carregados, sem muita preocupação com o apuro estético, realidade que dava azo à situações curiosas. Em mais de uma ocasião, os dois maiores festivais de cinema do país se negaram a conceder o prêmio de Melhor Filme, justamente por haver nada que sequer se aproximasse disso. Afortunadamente, no transcorrer de mais de meio século, esse é um passado que passou. “The Butterfly’s Dream” (2013), roteirizado e dirigido por Yilmaz Erdogan, figura como uma das produções mais sofisticadas da Turquia. Inspirando-se na trajetória dos poetas Muzaffer Tayyip Uslu (1922-1946) e Rustu Onur (1920-1942), que morreram de tuberculose sem nunca terem cruzado as fronteiras de seu país — não puderam nem ao menos deixar a província em que nasceram —, o trabalho de Erdogan presta um grande serviço quanto a desvendar os quase insondáveis mistérios que circundam a milenar cultura turca. Outro bom exemplo que depõe a favor do cinema turco contemporâneo é “Milagre na Cela 7” (2020), de Mehmet Ada Öztekin, sobre um homem com atraso intelectual acusado injustamente do homicídio de uma garota com idade próxima à de sua filha. Se a produção flerta com a megalomania ao se pretender um guia sobre como vencer o mal do mundo, tem seus méritos, entre os quais se destaca a maneira poética do turco enxergar-se a si mesmo, o outro e o mundo. Essa é uma qualidade de que “O Violino do Meu Pai” também se reveste.

Andaç Haznedaroğlu é uma das raras mulheres a adquirir prestígio no cinema da Turquia. A diretora de “O Violino do Meu Pai”, lançado em 21 de janeiro de 2022, prova que tudo o que se falou sobre os filmes turcos neste artigo é verdade. Haznedaroğlu abre sua história com uma bela cena de Istambul em plongée, vista de cima. A câmera desce e se vê uma roda de músicos numa rua da capital turca, em que uma garotinha dança atraindo os passantes a apreciar o espetáculo e, por óbvio, oferecer uma gorjeta. O roteiro, coescrito pela diretora, Murat Taskent e Palaspandiras, baseado na adaptação da peça de Yılmaz Erdoğan, segue, como um cartão de visitas da Turquia, apresentando, entre uma e outra revelação acerca da trama, cenários de tirar o fôlego. Sem pressa, se descobre que Mehmet, o virtuose do violino interpretado com uma mistura interessante de doçura e aridez por Engin Altan Duzyatan, terá de tomar a decisão mais difícil de sua vida, e o que quer que resolva irá afetar diretamente a vida de Özlem, a menina que dançava em meio aos músicos. A personagem de Gülizar Niza Uray, sua sobrinha de oito anos, está prestes a ficar órfã de pai e sozinha no mundo, e Mehmet tem a opção de assumir a guarda dela ou entregá-la à adoção. Um grande dilema para um homem que nunca experimentou pertencer a um núcleo tão restrito, e cuja carreira sempre foi sua razão de viver.

Conflitos de família, mormente os que envolvem crianças e tipos meio malditos como o personagem de Duzyatan quase sempre rendem filmes memoráveis, na Turquia ou em qualquer outra parte do globo. Em “Manchester à Beira-Mar” (2016), o diretor americano Kenneth Lonergan se vale de argumento semelhante num dos filmes mais belos — e tristes — do cinema. As novas configurações familiares, realidade presente no mundo inteiro, só comprovam que a natureza humana é hábil em se adaptar à dureza da vida, desde que possa ter por esteio o respaldo de alguém com quem se possa partilhar os sentimentos que melhor definem nossa condição. Pode-se viver muito bem sozinho (ou quase); entretanto, uma vez que se impõe em nossa jornada uma contingência como a que colhe Mehmet, é chegada a hora de se rever os planos. A forma como o protagonista o entende é que se constitui a grande reviravolta de “O Violino do Meu Pai”.

Com a dose certa de lirismo e dor, Andaç Haznedaroğlu faz de seu filme uma história tipicamente turca, mas capaz de chegar a qualquer coração sensível, a qualquer tempo. De um jeito tão simples quanto vigoroso, “O Violino do Meu Pai” se arvora num farol sobre a complexidade do homem ao iluminar seu lado negro e realçar suas luzes. Música para todos os ouvidos, portanto.

O Assassino de Clovehitch (2018), de ​Duncan Skiles

A relação entre pais e filhos sempre apresenta seus pontos de tensão, sobretudo na adolescência destes. O cinema sabe se apropriar da atmosfera de inadequação e questionamento que passa a grassar numa família em determinada quadra da vida de seus membros para dar mais credibilidade a suas histórias obscuras, e no suspense “The Clovehitch Killer” (2018), do diretor Duncan Skiles, o que sobressai é justamente o jogo de gato e rato de um chefe de família que seguiria passando ao largo de qualquer suspeita pela vida afora, mas fica encurralado por alguém que julgava ter nas mãos.

A vida tem o grande dom de se impor sobre a ficção. A história por trás do roteiro de Christopher Ford soa tão bizarra que só poderia mesmo ter saído dos fatos. Ford toma a criminosa de Dennis Lynn Rader, ainda que colateralmente, para conferir a substância de que seu terror necessita, e acerta em cheio. O autointitulado Estrangulador BTK, uma referência ao método que usava para seviciar suas vítimas (blind, torture and kill, ou “vendar, torturar e matar”), foi considerado culpado pelo homicídio cruel de pelo menos uma dezena de mulheres nos anos 1990, mas desde sua prisão nunca mais emitiu uma declaração pública sobre o que fizera.

Chefe de um grupo de escoteiros ligado a uma igreja protestante de uma cidadezinha do Kentucky, estado do sudeste dos Estados Unidos, Rader era perito em atividades ao lar livre, muitas com o emprego de cordas, tendo, portanto, livre acesso a um de seus fetiches macabros. Decerto temendo uma enxurrada de processos, em seu filme Skiles transforma Rader em Donald Burnside, um tipo exemplar, até tedioso em sua correção integral. A tal defesa que um ator encampa por seu personagem se aplica com justeza a um irreconhecível Dylan McDermott; pai de família amoroso, marido devotado e, acima de tudo, um homem temente a Deus, percebe-se logo no personagem que alguma coisa não quer se encaixar ali, o que o talento do ator esconde até o momento decisivo. Don compõe com Cindy, vivida por Samantha Mathis, a filha menor Susie, de Brenna Sherman, e Tyler a típica família média americana, de comercial de margarina. Nem pobres nem ricos, vivem com o conforto que a empresa de reparos domésticos de Don lhes permite. Tudo seria irretocavelmente perfeito, não fosse a personalidade naturalmente irrequieta do primogênito.

Queimando-se com gosto na chama da vida, o personagem de Charlie Plummer apanha a chave da caminhonete do pai na calada da noite para o encontro com uma colega do grupo de escotismo liderado por Don, do qual também faz parte. Da mesma forma que McDermott, Plummer é outro tiro certo no elenco de “O Assassino de Clovehitch”, e a ansiedade por levar a cabo seu desejo é sentida pelo espectador, mas quando a garota se abaixa para procurar a alavanca que reclinaria o banco, encontra algo que corta o clima. O pior é que, além de não acreditar que o objeto não se refira a ele, a moça conta a história para um amigo e o rumor se espalha. Não demora para que Tyler tenha de se combater a fama de pervertido, mas o que o consome mesmo é saber quem protagoniza a situação retratada.

Por óbvio, o romance morre na praia, e mal ele se acostuma à ideia de ter a vida devassada, Kassi cruza o seu caminho. Especialista autodidata no caso de assassinatos em série que tornaram a cidade morbidamente famosa, Madisen Beaty dá vida a uma Kassi que experimenta a angústia recém-instalada no cotidiano de Tyler desde a morte da mãe, uma das dez mulheres trucidadas pelo maníaco. É ela quem instiga o personagem de Plummer a tal ponto que o rapaz acaba invadindo o paiol nos fundos da casa da família, e o que encontra é aterrador. Infelizmente, ele já não nutre mais qualquer dúvida sobre o autor dos crimes.

Essa descoberta marca o encerramento do primeiro ato de “O Assassino de Clovehitch”, momento em que o suspense cede lugar ao terror, com espaço também para um coming-of-age sucinto, esmeradamente destrinchado, em que fica claro que o cristal se rompera e nada será como antes na trajetória do protagonista. Tyler toma pé da realidade de uma maneira orgânica — e a total ausência de jumpscares e de sangue é uma qualidade impressionantemente louvável no filme —, sem prejuízo do interesse na história, que cresce em medida inversamente proporcional à participação dos demais personagens na trama. Na vida, Cindy pode ter sido uma mulher de uma submissão exasperante, mas irrita ainda mais saber que tenha passado quase vinte anos ao lado de um facínora sem nunca se atentar para suas esquisitices — uma das perversões de Don era se travestir quando a esposa saía, expediente que chegava ao cúmulo de aplicar para dar vazão a seus instintos bestiais —, deixando que o filho do casal solucionasse o mistério. Se o trabalho de Dylan McDermott e Charlie Plummer já enchia os olhos, a performance de Madisen Beaty, fria, como lhe exige sua Kassi, mas desarmada, vem para fazer “O Assassino de Clovehitch” ainda mais estimulante. Plummer consegue levar a verossimilhança do desespero de Tyler até o fim, entre paralisado pela realidade de desvendar a real natureza do homem que mais admirava e vencer a melancolia estarrecedora que o assola a fim de dar ao caso o desfecho mais justo, ao passo que o veterano mergulha corajosamente no desconhecido de Don, um psicopata milimetricamente dosado, entre o tiozão caricato, de cabelo e bigode tingidos, e o monstro que passa por cima de qualquer um — do filho, inclusive — para manter o status de cidadão de bem e alma generosa que conquistou, desfazendo da inteligência alheia mesmo quando pego. Por seu turno, Beaty reforça o time, imprimindo à antagonista o papel que lhe cabe: atear ainda mais fogo ao enredo.

Apresentando uma mudança de perspectiva pela qual o espectador já esperava, “O Assassino de Clovehitch” soaria previsível, mas até isso Ford e Skiles conseguem reverter. No filme, Donald Burnside goza de um final honroso, homenageado pelo filho numa cerimônia para os membros da igreja que frequentava, revolta que a vida trata de mitigar: Dennis Rader segue encarcerado, aos 76 anos, no Instituto Correcional de El Dorado, no Texas, onde cumpre prisão perpétua, sem chance de liberdade condicional.

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