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OPINIãO DO LEITOR

Alteridade X Nunca nem vi

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Fernando Alves

Muitas pessoas gostam de tirar fotografias, algumas gostam tanto que transformam isto em profissão. Quem nunca teve vontade de tirar ou acrescentar coisas em suas fotos? Tirar uma espinha, diminuir ou aumentar determinada curva do corpo (ein?!)? Ainda mais quando você tira aquela foto linda, com a luz perfeita, com o seu melhor ângulo, mas ao fundo eis que aparece um ‘intruso’ e estraga tudo. A primeira coisa que vem a mente é “quero tirar essa pessoa”. Para essas e outras alterações que o Photoshop (programa de edição de fotos) foi criado.

Pouquíssimas pessoas devem saber que nossos olhos alcançam uma resolução de até 250 megapixels (imagine a câmera frontal do seu celular com uma resolução dessas), número que é capaz de causar inveja em muitas câmeras disponíveis no mercado. Menos ainda sabem que muitas pessoas possuem um editor de imagens em seus olhos, como o Photoshop. Capaz de aplicar filtros que excluem determinados elementos do campo de visão.

Mas que ‘elementos’ são estes, os excluídos? A resposta é mais simples do que imaginamos: os pedintes, os moradores em situação de rua, marginalizados, ‘descamisados’. Os filtros instalados nos olhos de grande parcela da sociedade tornam estas pessoas invisíveis. É possível que muitos discordem desta afirmação, entretanto, outros tantos fecham os vidros do carro quando alguém se aproxima para pedir moedas, passam direto por pessoas jogadas pelas calçadas. São estes os principais atingidos pela filosofia do “nunca nem vi”.

Mas quem são essas pessoas? Onde vivem? O que comem? Poderia ser facilmente o tema de qualquer programa de reportagem. E é aqui que podemos fazer uma pequena viagem em nossa imaginação, no sentido de desativar os filtros que existem em nós, mesmo que inconscientemente.

Imagine um rapaz jovem de nome Adamastor, morador de rua. Pelas seis da manhã ele acorda com o barulho dos carros e pessoas. E aqui começa o seu dia. Primeiro desafio: encontrar o café da manhã. Sua única opção é pedir e é isto que faz. Perambulando pelas ruas da cidade, estica suas mãos pedindo trocados para comprar seu café, porém as pessoas fogem, porque Adamastor está há três dias sem tomar banho. Como morador de rua, é difícil encontrar um simples chuveiro para fazer sua higiene, ainda mais quando a natureza chama para fazer suas necessidades. Após algumas horas, consegue poucas moedas que troca por sua comida.

Adamastor quer sair dessa vida, mas não vê como. Pois, para trabalhar precisa de carteira de trabalho, coisa que não tem. Se, nas melhores das hipóteses, conseguir uma entrevista de emprego, precisa ir adequadamente, ‘apresentável’ como uns diriam porque é preciso ‘vender’ sua imagem como falariam outros. Conseguindo o emprego, teria que ter conta em banco para receber o salário. No banco pediriam endereço (para um morador de rua) e telefone de contato. Só de pensar nisto tudo, Adamastor sente-se desanimado e segue pelo seu dia.

Adamastor percorre a cidade atrás de outras moedas para o almoço. Passa por tantas lojas e tantas lanchonetes bonitas, mas sequer pode entrar, pois sabe o tratamento que ‘pessoas como ele recebem’. Por sorte, recebe doações de alimentos de grupos de igrejas e outras instituições. Todavia, só recebe isso às sextas e finais de semana. A fome, teimosa, continua nos outros dias. Estudar é difícil, mesmo que muitos acreditem ser fácil. O que Adamastor ganha pedindo, ganharia menos ainda se estivesse dedicando seu tempo aos estudos.

Pequena história criada sobre um rapaz chamado Adamastor. Para quem nunca precisou passar por isso, respostas podem surgir o tempo todo. “É só ele fazer isso ou aquilo”, porém, a realidade é bem mais dura que estas poucas linhas. Estes HUMANOS, como nós, possuem os mesmos ‘direitos’ e são ‘invisibilizados’ pela sociedade. Vamos fazer mais uma reflexão?

A Constituição Federal diz em seu artigo 5° que “todos são iguais perante a lei”. Mais do que isso, o inciso XV nos diz que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz”, o famoso direito de ‘ir e vir’. Responda-me: como é o tratamento de um pedinte quando adentra determinados ambientes? Desde os ambientes mais simples até os mais luxuosos. O que aconteceria com o Adamastor e por que aconteceria isso?

Será que a resposta da pergunta anterior não esta frontalmente contra o que diz outro inciso da Constituição? Aquele que proclama, tão lindamente, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, previsto no inciso III, do mesmo artigo. Se o Adamastor for posto para fora do estabelecimento, a culpa é exclusiva do dono do lugar ou também da sociedade que através do filtro implantando nos olhos que preza pela exclusão de ‘elementos’ que causam desconforto? Porque há HUMANOS que não suportam dividir o mesmo espaço com outros HUMANOS, se esquecendo que quando morrerem ambos voltarão ao PÓ.

Como Adamastor, qual seria a sua reação? Como dono do estabelecimento, qual seria a sua reação? Como cliente, qual seria a sua reação? Lembrando que, como Adamastor, você poderá sentir toda a injustiça e revolta pelo ato de expulsão. Como dono do local, encarar o dilema de: manter a pessoa no ambiente e encarar o ‘desconforto’ e ‘descontentamento’ que os demais clientes possam ter, ou, simplesmente, expulsar. Como cliente, os seus sentimentos podem variar muito, desde alguém que não ligue para a situação, seguindo o baile, jogando a responsabilidade para o dono do estabelecimento ou como alguém que tomaria, em partes, as dores de Adamastor e ser insurgiria contra essa injustiça.

De tudo que fora aqui exposto, é que o exercício da alteridade torna-se tão importante. Entender o que se passa com todos os personagens desta realidade nos faz compreender, mesmo que ‘pequenamente’, a complexidade e defeitos de uma sociedade que possuem pré-conceitos tão arraigados ainda.

Mais pontos para reflexão.

Em Cuiabá, por exemplo, há três albergues (locais destinados ao abrigo de moradores de rua, pessoas em trânsito e reintegração familiar). A soma de vagas de nestes lugares é de 150. Há ainda uma unidade da Pastoral do Migrante que atua em parceria com a prefeitura, contando com mais 100 vagas. As pessoas atendidas recebem diversos atendimentos, inclusive psicológico. No entanto, podem permanecer no estabelecimento por até 3 meses. Um informativo da própria prefeitura de Cuiabá diz que 468 pessoas foram atendidas (o que é um número muito bom), mas vejamos. O total de vagas oferecidas é de 250 vagas e o número de pessoas atendidas passa de 400. Se todas essas pessoas buscarem ajuda ao mesmo tempo, podemos concluir que alguém dormirá na rua. Pobre Adamastor.

Aprofundando na reflexão.

Santo Agostinho relata que “necessitamos um do outro, para sermos nós mesmos”. Jesus ensina que devemos “amar ao próximo, como a nós mesmos”. E indo um pouco mais longe, através do Imperativo Categórico de Immanuel Kant que leciona o dever das pessoas em agir de acordo com os princípios que considera melhor para a sociedade. Percebemos que necessitamos um dos outros tendo em vista que não vivemos sozinhos e precisamos da coletividade (basta lembrar-se do caminho que a comida faz para chegar até o seu prato, por exemplo). Quando a coletividade atua de modo fraterno, automaticamente eu tenho meios para ser quem sou se caso por força maior, estiver em situação de limitação. Se eu amo ao outro, do modo que me amo, nunca que seria do meu desejo dormir sem um teto sobre minha cabeça ou deitar com a barriga roncando por fome. Logo, se eu prezo por princípios fraternos, de cooperação e amorosos, estes serão devolvidos a mim. Porém, através do uso de filtros em nossas câmeras oculares, tornando invisível o próximo, automaticamente poderei estar me tornando invisível, pois para o outro eu sou o próximo.

Portanto, atitudes de construir, manter e expandir lugares de acolhimento para pessoas que se encontram sujeito as mazelas do destino, é o primeiro caminho para o resgate de um ser HUMANO por outro HUMANO a uma vida digna. Que tal ato não deva ser posto apenas sobre os ombros do Estado, mas de todos nós.

Excluindo nossos filtros, enxergando o próximo e os concedendo a liberdade de ir, vir, permanecer e ser desenvolver.

Não se esquecendo que trocados dados na rua são peixes, as refeições dadas pelas ONG’s são peixes, abrigos temporários são peixes, doações de roupas são peixes. Não direi que são dispensáveis, todavia, é preciso ensinar a pescar. Pescar seus próprios trocados, pescar suas próprias roupas, seus próprios alimentos. Enquanto não dermos oportunidades, estaremos ainda fadando tantos outros Adamastores a prisão da dependência de não poder andar com as próprias pernas, que tão são minhas, a alteridade me mostra isso.

O exercício da alteridade é a salvação do Adamastor, minha e sua. Não ver isso é ainda estar com filtros ativados.

Fernando Alves é acadêmico de Direito, estagiário, além de escritor e poeta amador.

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